Algo que não partilho muito mas que, de alguma forma, é essencial haver uma maior partilha, é sobre como traumas podem influenciar o nosso caminho no mundo do bdsm.
Muito recentemente, este assunto foi abordado muito ligeiramente num chat e pensei “Será que a minha experiência pode ajudar outras pessoas?”
Demorei muito a escrever este texto e pensei imensas vezes sobre o que me sentia bem em partilhar ou não. Não o faço por me sentir inferior ou vitimizar-me. Acredito que ter traumas e fazer bdsm, não são premissas incompatíveis e é possível estar no meio kinky tendo um passado…

Desde muito cedo que percebi que tinha desejos e vontades um pouco diferentes dos outros… A minha primeira experiência íntima foi com uma mulher; muito nova eu já deitava cera em mim e usava agulhas nas mãos para experimentar dor e sensações.
Tinha desejos que percebia que pessoas amigas e da minha idade não tinham, isso trouxe-me imensas dúvidas sobre mim, porque tinha aqueles pensamentos e durante muito tempo neguei os desejos ao ponto de auto-castigar-me mentalmente.
No percurso da adolescência e no início da maturidade, tive umas quantas experiências de vida traumatizantes – incluindo tentativa de afogamento na infância e tentativas de abuso sexual, o que me marcou profundamente e fez-me fechar emocionalmente, sem contar com o facto dos meus desejos e vontades (relacionados com o BDSM) ficassem fechados num cofre até muito mais tarde. Tive duas depressões e já em vida adulta foi me diagnosticado ansiedade e tive dois ataques de pânico.

Que repercussões estas experiências tiveram em mim?
Olhando para trás e analisando, moldaram-me de forma intrínseca.
Consigo plenamente racionalizar os eventos, há sempre um lado não racional que funciona dentro de nós, que é ativado para prevenir novos traumas e repetição do sofrimento. Porque “The body keeps the score” (sim, há um livro com este título que fala sobre o funcionamento de traumas no nosso cérebro)!
O nosso corpo e mente, aprende com as nossas vivências e os traumas deixam efetivamente marcas no cérebro.
Ainda hoje water play, é off limits para mim e o tempo que preciso para confiar em alguém é longo.
Tive 7 anos sem conseguir ser tocada por ninguém a nível íntimo.

Estamos estragad@s?
Não… É sabido que ao longo da vida TODOS experienciamos traumas, com maior ou menos grau e faz parte da essência de sermos humanos. A maioria acorrem na infância e adolescência.
Termos traumas não faz de nós fracos ou frágeis! Não faz de nós menores ou incapazes. Não implica que estejamos no BDSM porque somos malucos, sem auto estima, com problemas nem implica que queiramos repetir os traumas, apesar de haver exercícios terapêuticos que funcionam nesse sentido com ajuda de profissionais.
Não me sinto estragada pela minha experiência de vida. Não escondo que tive depressões e ansiedade e consigo falar abertamente sobre o assunto, não é preciso ter vergonha de. Não tive culpa, não fiz nada para tentarem-me violar, não fiz nada para que me tentassem afogar, porque deveria ter vergonha?

Acontece infelizmente, ultrapassei as situações e estou feliz e bem comigo mesma hoje em dia. Possivelmente fizeram com que seja mais cautelosa em algumas situações mas ‘faz parte’, aprendi a viver com isso, a contornar os triggers e como estar bem na minha pele.
Não utilizo BDSM como um escape e não procuro aprovação de ninguém através de relações BDSM, não me sinto ‘coitadinha’. Não me vitimizo nem permito que me desvalorizem enquanto pessoa por causa do meu passado.
Gosto de humilhação, restrição/bondage, sou primeiramente submissa, e ‘consigo’ fazer tudo isto e mais umas coisitas, mesmo tendo um passado menos bom, pois estar envolvida em BDSM e ter um passado assim não é incompatível.
Aliás consegui ultrapassar e fazer atividades que anteriormente que considerava impensável, incluindo fotografia com nudez.

Mas BDSM pode ser terapêutico?
Claro que sim! Pintar pode ser terapêutico. Passear na praia pode ser terapêutico. TUDO pode ser terapêutico. Fazer BDSM não implica fazer terapia, não se resolve problemas com BDSM, mas podemos nos sentir melhor com a Play X ou Y, sim claro que sim… Fazer cordas e ser restringido pode ser calmante e relaxante, por exemplo. O boost de endorfinas e hormonas que produzimos, ajuda na forma como nos sentimos e isso pode ajudar na auto-estima, na libertação de stress, etc. Creio que ter em mente que terapêutico e terapia são duas premissas diferentes seja importante.

Sabiam que…?
Praticantes de BDSM são estatisticamente considerados mais felizes e extrovertidos?
Que BDSM já é amplamente estudado por psicólogos, psiquiatras e sociólogos em todo o mundo?
Que a Associação Americana de Psicoterapia tem profissionais ‘kinky-friendly’ e promove conhecimento kinky a profissionais para ajudarem os seus pacientes?

NOTA PESSOAL
A nível pessoal, passei por tratamento psicológico.
Fiz psicoterapia e continuo em manutenção com psicóloga e sou apologista que termos um profissional de psicologia “como uma fonte de escape“, é saudável.
O estigma em volta das pessoas com problemas psicológicos, com traumas ou depressões é gigante e muitas das vezes infundado e merece ser desmistificado!

A saber
Esta partilha não é feita sob a orientação de nenhum profissional. É feita a nível pessoal, com o intuito de desmistificar a ideia de que pessoas traumatizadas não devem envolver-se no BDSM ou que procuram o BDSM como refugio.
Caso necessitem de ajuda profissional, procurem-na e não tenham vergonha.